terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

FILOSOFIA: Apolo, Quíron, Asclépio e Hipócrates - O Mito Grego da Medicina

pela profª Luciene Felix, do blog http://www.lucienefelix.blogspot.com/

“A vida é curta, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência enganosa, o julgamento difícil” – Hipócrates (Pai da Medicina)



 
No cerne de toda pedagogia grega observamos a atenção aos limites, contrapondo o que há de mais caro ao homem: a liberdade. Na Paidéia do mito da Medicina, também de valor inalienável, é a própria vida que está em questão.

Dentre os temas recorrentes, a deformação, a banalização e a superação de distúrbios tanto da alma (psyché) quanto do corpo (soma). Na linhagem das arcaicas figuras simbólicas da cura destacam-se Apolo, Quíron e Asclépio (Esculápio, na romana).

Nesta tríade divina, solar e supremo é Apolo, que presidindo a harmonia da alma, personifica o equilíbrio e simboliza o princípio da saúde. O sábio e generoso Centauro Quíron é seu fiel sacerdote. E o filho, Asclépio tem como mais famoso descendente o grego Hipócrates (460-377 a.C.), renomado expoente de uma família que praticara a Medicina por muitas gerações, considerado “O Pai da Medicina”.

Narra Homero, que Asclépio realmente existiu (em cerca de 1.200 a.C.) e que, abençoado pela luz de Apolo, fora um semideus. Atentos aos domínios orgânicos e psíquicos (psicossomáticos), enquanto o pai presidia a sanidade da alma, o filho se empenhava em presidir a saúde do corpo.

O predomínio da atenção sobre um em detrimento do outro é desarmonioso e é desse interdito que trata o mito. Há inúmeras versões dessa alegoria, inspiraremo-nos em Píndaro (518-441 a.C), Apolodoro (180-120 a.C.) e Ovídio (43-18 a.C.), entre outros.

Reza um antiqüíssimo relato que na Tessália ninguém superava a jovem Corônis em graciosidade e formosura. Impressionado pela rara beleza da mortal, o deus da harmonia, Apolo, filho legítimo do soberano do Olimpo, Zeus, se apaixona perdidamente pela moça.

Mas a donzela, entre envaidecida por ter despertado a paixão de um imortal e o temor de se ver abandonada na velhice, mesmo grávida de Apolo, decide se casar com um jovem chamado Ischys.

Poderia uma mera mortal ousar recusar a dádiva do amor de um deus? O mensageiro da funesta notícia é um corvo. Outrora todos brancos, em punição pela má notícia, Apolo os torna negros como o ébano.

Inconformado pelo desprezo e traição, Apolo assassina o rival e pede a sua irmã, Ártemis, que fulmine a infiel. Desconcertado, ao ver o corpo da amada em chamas sobre a pira, Apolo se apressa a arrancar-lhe do ventre seu filho Asclépio.

O deus da saúde, da música e da harmonia, confia a educação da criança a Quíron, que por ser filho do titã Chronos também era imortal. Este brilhante Centauro fora gerado enquanto seu pai metamorfoseara-se num cavalo, daí sua aparência híbrida.

Extremamente inteligente, culto e bondoso, Quíron, por sua vez, foi adotado por Apolo, que o ensinou a arte do divinatio (adivinhação), música, ética, ciência e thaerapéia (do grego, servir ao divino), dentre muitas outras technai (técnicas). O Centauro foi professor e tutor de heróis famosos tais como: Aristeu, Ajax, Enéas, Teseu, Aquiles, Jasão, Peleu, Héracles e, claro, do menino Asclépio.

Por ser portador de uma ferida incurável, Quíron entendia a dor e o sofrimento dos enfermos e ensinava ao dedicado rapaz a alquimia das ervas extraindo poderosas drogas, infusões, ungüentos, banhos medicinais, dietas, sangrias, cirurgias, além dos benefícios da exposição ao sol, de caminhadas com os pés descalços, abstinência sexual, higiene, dos exercícios físicos e etc.



Espantosamente habilidoso, Asclépio recebeu da tia Palas Athena (leia neste Blog o mito da deusa grega da Sabedoria e Justiça), um poderoso pharmakón: o sangue da rainha das Górgonas, que tanto curava quanto matava: “Querido afilhado, trouxe-lhe dois frascos contendo o sangue da Medusa. Um deles contém o sangue extraído da veia esquerda. Se der esse líquido a uma pessoa recém-falecida, você a trará de volta à vida. O outro frasco contém o sangue da veia direita. Se der esse sangue a alguém, você a matará instantaneamente, pois se trata de um líquido fatal. Tome muito cuidado ao utilizá-lo”.

Por ter como pai Apolo e preceptor Quíron, Asclépio reuniu as duas tendências da arte médica, curando tanto corpos quanto almas.

Quando surpreendidos com a notícia de uma enfermidade (própria, num familiar ou amigo) é reconfortante saber que se está sob os cuidados dos mais renomados especialistas. Conformados, suspiramos: “Agora está tudo nas mãos de Deus”. Fora com essa areté (excelência) que Asclépio desempenhara suas funções: ferrenho seguidor dos ensinamentos de Quíron e subalterno a seu pai Apolo, que roga que o doente seja tratado como um todo.

O estudioso Paul Diel relata que na antiga Grécia, recomendava-se que o enfermo pernoitasse no templo se Apolo para que, exposto à influência do sagrado, se concentrasse em seu sofrimento. No dia seguinte, os sacerdotes procuravam interpretar os sonhos para vislumbrar uma terapêutica adequada. Este procedimento era repetido tantas vezes quanto julgassem necessário.

Numa anamnése (do grego, trazer mnemósyne, a memória à tona), como ocorre até os dias atuais, procurava-se saber de todo histórico pessoal e dos antepassados, doenças físicas e angústias psíquicas.

Muitas vezes o paciente estava acometido por uma enfermidade hereditária, ao qual era frágil ou mesmo a uma doença oriunda de uma desarmonia psíquica que não era necessariamente sua, mas que por hamartía (marca de nascença, confira neste Blog “O mito de Tântalo”) o afetava.



Orgulho de Apolo e de Quíron pela competência em representar a ciência, Asclépio sentia muito prazer em curar e não tardou a obter fama e glória. Até que um dia, arrebatado pela vaidade (há controvérsias entre os aedos/poetas se foi por vanitas ou pura e simples expertise), com formidável empenho, ressuscita defuntos e, consegue abolir a morte, alcançando sucesso extraordinário.

Asclépio torna-se senhor da vida e da morte, que é essencial na condição humana, vencendo a finitude da qual, antes dele, ninguém podia escapar. Hades, soberano do reino dos mortos, constatando o despovoamento de seu império, sente-se ultrajado em seu kratós (poder) e queixa-se a Zeus, protestando e exigindo que atentasse à ousada insolência.

O ordenador do Cosmos, temendo que a maestria de Asclépio revertesse à ordem do mundo, não titubeia em fulminá-lo imediatamente com seu raio.
Desolado, mas não podendo se vingar do soberano do Olimpo, seu próprio pai, Apolo extravasa sua dor matando os Ciclopes, gigantes de um olho só, que fabricaram os raios que puseram fim à vida de seu dileto filho. Abrandada sua dor, suplica a Zeus que o coloque entre as estrelas (constelação do Serpentário, Ophiucus: “aquele que leva a serpente”), imortalizando-o.
Viver para o corpo e morrer para a alma é contrário ao sentido da vida. Asclépio se esquece que o princípio vital de sua missão não é a de somente conservar o corpo, mas fortificar a alma.

Hipócrates, fidedigno a este interdito, ao iniciar seu solene juramento ético invocando-os, tributa-lhes honras e glórias: “Eu juro, por Apolo, médico, por Asclépio (...)” (Confira na íntegra abaixo).

Competentes, mas falíveis, médicos vivenciam a apolínea necessidade de harmonia na morada da alma traduzida na máxima do poeta satírico romano Giovenale: “Orandum est ut sit mens sana in corpore sano” (Reze para que a mente seja sã dentro de um corpo são).

Na “santa e salubre” cidade de Epidauro onde nasceu Asclépio, havia um templo, um bosque sagrado e uma fonte miraculosa. Neste Asklepéion se desenvolveu a primeira Escola de Medicina. Também possuía Templos próprios em Corinto, Pérgamo e Cós.

Em muitas pinturas e esculturas, o deus da Medicina é representado com sua coroa de louros, firmando, numa das mãos, a patera (cálice de sua filha Higéia) e noutra, a serpente (símbolo de sabedoria, imortalidade, cura e renascimento pela troca de pele) envolta num bastão da mais nobre madeira, o cetro (veja abaixo emblemas na bandeira da OMS – Organização Mundial da Saúde e do CREMESP).

Em virtude da faculdade investigativa, seu animal é o cão (“Cadela acerta 95% dos casos ao farejar pessoas com tumor no intestino; Universidade do Japão tenta desvendar habilidade”. Folha de S. Paulo, coincidentemente na data desta publicação, 1º de fevereiro de 2011). Alguns autores também citam a tartaruga, pela vagarosidade de alguns tratamentos.

E sua oferenda é o vigilante galo: “Pague um galo a Asclépio”, segundo Platão, são as últimas palavras proferidas por Sócrates, para quem morte era vida, antes do último suspiro.

Diz-se que se casou com Epione (deusa da anestesia) e dentre os filhos gerados citamos: Machaon (Macaon/Macaão - cirurgião), Podaleirus (Podalírio - diagnóstico clínico), Panacea (Panacéia - ervas medicinais), Iaso (deusa da cura), Aglea (boa forma) e Higia (Higéia - deusa do asseio, da higiene). Relata-se que seus dois filhos, os irmãos, Machaon e Podaleirus atuaram bravamente na mais famosa guerra da antiguidade, curando muitos soldados troianos.

Em Atenas, desde o séc. V a.C., nos dias 17 e 18 de outubro celebrava-se a grande festa de Asclépio e até hoje, em 18 de outubro comemora-se o “Dia do Médico”. Era a segunda data mais festejada, perdendo apenas para Dioniso (Bacco).

Popular, o semideus que ressuscita mortos (como Jesus, O Cristo) foi a divindade pagã mais adorada entre os romanos: as moedas cunhadas com seu caráter impresso eram de grande valor.

Merecedor do título de Salvador dos Humanos, Asclépio é divinizado: “Recebe o que os gregos chamam de ‘apoteose’” (apo = em direção a + théos = divino).

Semideus, Asclépio “não está no Olimpo nem habita o Hades, mas caminha entre os homens, ensinando a medicina”, inspirando magnânimos, obstinados e virtuosos Asclepíades como os imaculadamente notáveis e inesquecíveis Zerbini (Machaon) e Décourt (Podaleirus) aos quais tantos devem a vida, os ensinamentos e eu, a irremovível pedra angular na formação ética (éthos = conduta, hábito, habitat) de meu caráter.
Referências Bibliográficas

Commelin, P. – Mitologia Grega e Romana – Ed. Martins Fontes. São Paulo, SP, 1997.
Diel, Paul – O simbolismo na Mitologia Grega – Attar Editorial. São Paulo, SP, 1991.
Ferry, Luc – A Sabedoria dos Mitos Gregos – Aprender a Viver II. – Ed. Objetiva Rio de Janeiro, RJ. 2008.
Graves, R. – Les mythes grecs. Paris: Fayard, 1958.
Hamilton, Edith – Mitologia – Ed. Martins Fontes. São Paulo, SP, 1997.
Meunier, Mário – Nova Mitologia Clássica – Ed. Ibrasa – São Paulo, SP, 1997.
Prieto, Heloisa – Divinas Desventuras – Ed. Cia. das Letrinhas – São Paulo, SP, 2009.
Souza Brandão, Junito de – Mitologia Grega – Editora Vozes. Petrópolis, RJ, 2001.
Tuoto, E.A.– Asclépio, o Deus da medicina In: História da Medicina by Dr. Elvio A. Tuoto (Internet). Brasil, 2010.

JURAMENTO DE HIPÓCRATES

"Eu juro, por Apolo médico, por Asclépio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue:

Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.

Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.

A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.

Conservarei imaculada minha vida e minha arte.

Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.

Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.

Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.

Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça."

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