segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O ESTADO SOCIAL É O CAMINHO


(*) O texto é de um autor português e o link encontra-se ao final

Face às actuais políticas neo-liberais, tão cantadas e elogiadas um pouco por todo o lado, que papel caberia ao estado, na sociedade contemporânea, se estas tivessem acolhimento, uma vez que tais políticas tenderiam a reduzir o papel do estado a uma simples função residual?

Os neo-liberais apregoam aos quatros cantos do mundo que querem menos estado e melhor estado, querendo com isto dizer que o poder de direito não deverá residir nos cidadãos, isto é, na democracia politica, mas sim terá que ser entregue aos grandes grupos económicos, que tudo querem decidir. Basta ouvi-los.

Ora, cabe aos filósofos, e a outros pensadores livres, dizer a todos que a subsistência do Estado Social é essencial para a sua preservação e elucidar os neo-liberais que a redução do tamanho do estado até ao estado simbólico, que preconizam, conduziria à agonia das nações e dos povos, das famílias e dos cidadãos.

O Estado só pode mediar conflitos, naturais nas vivências em sociedade, se não for reduzido aos caprichos de poderosos grupos económicos, sob pena de deixar a maioria dos seres humanos sem qualquer tipo de protecção.

Aja em vista que os grandes grupos económicos e financeiros ou não têm rosto ou raramente o têm. Os seus dirigentes mais importantes ninguém os conhece, constituindo lobys poderosos, com testas-de-ferro bem remunerados que, esses sim, em seu nome, dão a cara, tendo estes no lucro o único objectivo das suas motivações.

O Estado, nas pessoas dos seus representantes, deverá ter como finalidade última não defraudar os princípios que enformam o modelo de sociedade sufragado pelos povos, de modo esclarecido, livre e democraticamente.

O Estado tem que agir, criando condições para que todos usufruam do que a todos pertence. E reagir, se for caso disso. Isto é, quando qualquer tentativa de mudança, fora do modelo criado, pareça querer sobrepor-se.

Nota-se, no nosso tempo, o enfraquecimento do Estado devido àquela fórmula neo-liberal: menos estado melhor estado! Por isso, é muito importante estar atento aos sinais que o sistema de globalização traz e reagir à menor tentativa de mudança fora dos limites que a lei constituinte consagra.

Os cidadãos do mundo não podem adormecer com os discursos muito bonitos e entusiasmantes que os ideólogos do neo-liberalismo propagam. Nunca, por um só momento, deverá ser esquecido o dito popular, que diz: "fulano dá um chouriço a quem lhe der um porco". Esta máxima aplica-se, na sua grande maioria, à política neo-liberal que tantas virtudes reconhece na globalização da economia e da vida humana.

Com efeito o grande capital globalizado, à escala transnacional, vê, nesta política, reconhecidos os seus privilégios e reforçados os seus interesses. Se sem a alteração das constituições nacionais é o que se vê, pense-se no que seria se o neo-liberalismo ganhasse força política e conseguisse mudar os textos constitucionais a seus belo prazer (sic)!

O Estado não pode abdicar da sua função reguladora dos interesses em presença. Os fortes têm sempre protecção, os fracos pagam sempre a factura. Por isso, o estado não pode permitir que os limites sejam ultrapassados. Há limites para a ganância e a sede de poder, mesmo dos pequenos poderes.

A razão de ser do Estado são as pessoas – todas as pessoas. Não apenas uma pequena minoria esclarecida, uma elite, ou um poderoso grupo económico. O principal papel do Estado é preocupar-se com o bem-estar do todo, que é a comunidade que o constitui, e não apenas com uma das suas partes. Com efeito, o caminho é inevitável: reforçar o papel do Estado Social, consubstanciado na regulação dos bens vitais, nos princípios de solidariedade e na criação de igualdade de oportunidades.

(António Pinela, Reflexões, Abril de 2006).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

COMPORTAMENTO: FREUD E A BUSCA PELA FELICIDADE



Sigmund Freud (1856-1939), em seu opúsculo “O Mal Estar na Civilização”, afirma que o homem anseia pela felicidade e que esta advém da satisfação de prazeres. Essas buscas pelas coisas que nos fazem bem provêm da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau. Ganhar na mega-sena será diferente para um endividado ou um milionário. O enfermo anseia por algo que uma pessoa saudável nem pensa.

Tornarmo-nos pessoas felizes é um impositivo do princípio do prazer que trazemos desde a origem e para o “pai” da psicanálise, isso não pode ser plenamente realizado. Mas nem por isso devemos [ou podemos] deixar de empreender esforços para nos aproximarmos ao máximo desse objetivo.

Uma situação de júbilo, inicialmente intenso (tal como o sucesso numa árdua e arrebatadora conquista amorosa) pode até se prolongar, mas, após certo tempo, ela produz somente um sentimento de contentamento. A felicidade e o prazer proporcionados por tantos bens de consumo se esvaem tão logo o adquirimos: “Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas”. Embora sejam diversos os meios para alcançarmos a felicidade, é ainda mais fácil experimentarmos a infelicidade.

Significativas fontes de sofrimento são: a) testemunhar a irreversível decrepitude e a certeza da mortalidade de nosso corpo; b) ameaças do próprio mundo externo, cuja destruição, seja fruto do poder superior da natureza ou da violência de nossos semelhantes sempre nos assombram e, c) a maçante tarefa de nos relacionarmos com os outros, no seio da família, em sociedade e no Estado.

As “lamparinas do juízo” nos forçam a reconhecer essa impotência: não há muito a fazer em relação às duas primeiras fontes de angústia. Só nos resta à sensatez de nos submetermos ao inevitável: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização”. Conviver pode ser complicado e nisso talvez consista a maior fonte de infelicidade (lembremo-nos do nosso artigo já publicado aqui, “Sartre – O inferno são os outros”).

Freud diz que não é de admirar que os homens tenham se acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade: “Na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade”. Assim, um indivíduo pode pensar ser feliz, simplesmente porque sobreviveu ao pior.

Espanta-nos a resignação de tantos desafortunados que, habituados à luta de evitar ainda mais sofrimentos, não priorizam obtenção do prazer. (Mal) disfarçadamente, se comprazem ao relatar um caso de pandemia, duma falência, da queda de um avião e proferem de cor a máxima: “antes pobre com saúde...”. Desconfiados, ao se depararem com um rico saudável, sentenciam: não deve ser feliz!

Evita-se sofrimento mantendo distância das pessoas, se isolando. Mas a felicidade passível de ser alcançada assim é apenas a da quietude. Não convivem. Freud aponta o que considera mais plausível: “tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência [entenda-se, trabalho], passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana”. Eis a razão pela qual a civilização tanto dignifica o trabalho: estamos com todos, para o bem de todos.

Considerando que o sofrimento é sensação e que ele só existe na medida em que o sentimos, o estudioso da psyché (alma) verifica como o uso de prazerosas substâncias que alteram a percepção (álcool ou outro tipo de droga) pode constituir um “amortecedor de preocupações”, um precursor de felicidade. É justamente por deter qualidades tão apreciáveis que o uso desmedido de psicotrópicos é perigoso e capaz de causar grandes danos à humanidade, pois desperdiçam energia que poderia ser “empregada para o aperfeiçoamento do destino humano” (confira meu vídeo sobre esse tema nesse blog).

Eficazes no combate à contrariedade da satisfação dos instintos estão os “agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade”. Dessa forma, o ego, através da sublimação, sujeita os desejos irrefreáveis, doma os instintos mais selvagens, a agressividade e a tendência à barbárie. Exemplos desses “agentes psíquicos superiores”, ordenadores, são as leis, os direitos e deveres, o respeito à ordem e a consideração aos nossos semelhantes.

Trabalhar faz bem: “a alegria do artista em criar ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial”. Para Freud: “Obtém-se o máximo [de felicidade] quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual”, que considera “mais refinadas e mais altas”.

Infelizmente, diferente da satisfação de nossos impulsos mais primitivos e grosseiros, essa salutar felicidade pela realização de um trabalho é acessível a poucas pessoas: “pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de ser comuns”. São àqueles que não trabalham somente pela remuneração.

Mesmo um trabalho profundamente gratificante não garante proteção contra as vicissitudes inerentes à vida; e é impossível que, dessa forma, alguém consiga se precaver contra toda forma de sofrimento. Mas ao nos orientarmos para uma espécie de “vida interior”, buscando alento em nossos processos psíquicos internos, intentamos nos tornar independentes, ao máximo possível, das pressões do mundo externo.

Outra forma de felicidade é a que nos proporciona o fruir das ilusões. A beleza é uma promessa de felicidade e a civilização não pode dispensá-la. Quando, em lazer, contemplamos alguma obra de arte (música, literatura, cinema, teatro, shows, exposições, parques e mares), experimentamos uma “suave narcose”. Mas embora isso nos afaste momentaneamente dos problemas, não é forte e constante o suficiente para nos fazer esquecer as preocupações reais.

Dentre os perigos de não se aceitar a realidade, rompendo as relações com ela, está o de nos tornarmos loucos. Assim, na busca cega pela felicidade, rejeitamos a realidade, recriamo-la a nosso gosto, eliminando seus aspectos mais insuportáveis.

É certo que, em algum grau e sob algum determinado aspecto de nossa vida, agimos como o paranóico que “corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade”. A linha que separa a atitude de quem vê o mundo através de lentes cor-de-rosa da de um ‘louco’ é tênue. O louco é “alguém que (na maioria das vezes) não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio”. Talvez seja por isso que hoje em dia, com a adesão de muitos, inúmeros absurdos nem sejam mais considerados “coisas de louco”.

Freud aponta a religião como um típico exemplo de como a loucura pode ser legitimada, bastando ser compartilhada, por um número significativo de pessoas. Intenta-se obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade. A religião, para ele, restringe o jogo de escolha e adaptação, pois impõe, igualmente para todos, como sendo o caminho certo e seguro, tanto para a felicidade quanto como proteção para todo e qualquer sofrimento: “Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual”.

O fervor da fé, presente no coração de uma pessoa extremamente religiosa pode poupá-la da dor e do sofrimento? Quando um crente/temente, acometido por alguma desgraça se vê obrigado a creditar a causa de sua angústia e desespero a algum insondável “desígnio” de Deus, nada mais faz senão admitir que tudo o que lhe restou de consolo foi essa sua submissão incondicional ao imponderável. Para o psicanalista, se o ser humano estiver lucidamente cônscio de que é passível de vir a se deparar com essas adversidades, pode muito bem dispensar fundamentalismos.

Amar e ser amado! O amor também é um caminho para a felicidade. Mas, dentre os perigos do amor, está a vulnerabilidade à qual nos sujeitamos: podemos perder nosso objeto de amor ou o sentimento de amor que o amado nutre por nós pode acabar. Mesmo assim: “Há porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez?” indaga o analista da psyché.

É ilusão imaginarmos que tenhamos tudo o que desejamos: “A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo”. Resta descobrir, por nós mesmos, de que modo podemos ser felizes, ponderando sobre quanto de satisfação real podemos esperar do mundo exterior, quanta força dispomos para alterar o mundo que nos cerca a fim de adaptá-lo aos nossos desejos e também de adequar nossos desejos a ele.

Nessa empreitada, ainda mais relevante que as circunstâncias externas, será nossa constituição psíquica. Embora sejamos multifacetados (e estejamos sempre em mudança ao longo da vida), o indivíduo predominante erótico, por exemplo, priorizará seus relacionamentos emocionais. Os narcisistas, solitária e auto-suficientes, encontrarão mais satisfação em seus processos mentais internos. Não por acaso, quase sempre são muitíssimo bem sucedidos profissionalmente. Já o homem de ação, indômito, jamais abandonará o mundo externo, palco ideal para por em teste suas forças.

Freud nos ensina que, assim como um negociante cauteloso não cometeria a insensatez de empregar todo seu capital somente num tipo de negócio, a própria sabedoria popular nos alerta a não depositar nossa expectativa de felicidade e de satisfação numa única aspiração. Embora assegure que “Não existe regra de ouro que se aplique a todos”, alguns caminhos nos levam à felicidade. Acalentemos um amor, zelemos pela família, ocupemo-nos com prazer, apreciemos (com moderação!) as "suaves narcoses", cultivemos sinceras amizades e, para que não sejamos dilacerados, resignemo-nos ao inescrutável propósito maior, no caso de tudo falhar.

Por Luciene Félix
Agosto de 2009

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

HUMANISMO COMO PATOLOGIA



Vladimir Safatle: O humanismo parece querer nos ensinar a cartilha do passado

Há palavras que só podem ser escutadas quando gritadas. Só que, para gritar, é necessário força e, quando algumas dessas palavras não têm mais força para serem gritadas, a única coisa que resta é esperar que elas sejam ouvidas quando reduzirmos tudo o que nelas se contrapõe ao silêncio.
Percebamos, com os olhos de quem descobre um sintoma revelador, que aqueles que gostam de ancorar no porto do “humanismo” são os mesmos que não cansam de olhar para outros mares e chamar os que lá navegam de “niilistas”, “irracionalistas” e, se for necessário, até mesmo de “terroristas”. A estratégia é clara. A partir do momento em que a designação for imposta, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não será possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada fala, haveria muito “fanatismo” nesses simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações.

Bento Prado Júnior, que sabia muito bem o que esse tipo de esconjuração esconde, costumava lembrar, nessas situações, que: “Sempre se é o irracionalista de alguém”. Tudo indica que, infelizmente, caminhamos para um tempo em que será necessário acrescentar: “Sempre se é o niilista de alguém” e, pior, “Sempre se é o terrorista de alguém”. Ou seja, sempre há alguém a querer nos expulsar da razão, da criação, da política. Acusações dessa natureza são apenas a última arma desesperada daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, colocar em questão o que, para alguns, não deveria ser questionado, transformar a crítica, de mera comparação entre valores e caso, no questionamento de nossos próprios valores fundamentais.

Natureza segregadora e totalitária

Nesse sentido, que o humanismo só possa atualmente ser pronunciado por meio dessas suas designações impronunciáveis, que ele só possa ser enunciado abrindo esse lugar vazio para o qual todos aqueles que não se reconhecem mais na figura atual do homem devam ser enviados, isso apenas demonstra sua natureza profundamente segregadora e totalitária. Pois, daqui para a frente, o humanismo sempre virá para nos pregar o evangelho da tolerância de condomínio fechado, o racionalismo daqueles que acreditam que a maior realização da justiça é a guerra preventiva contra qualquer coisa que estiver geograficamente a leste da Turquia, daqueles que estão dispostos a falar com todos, desde que todos falem a língua dos seus valores e princípios.

Acima de tudo, “humanismo” será a palavra preferida daqueles que querem nos exilar no presente. Pois uma das maiores características do século 20 foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pela advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos. Essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos atualmente um grande esforço em apagar tal história, isso quando não se trata de simplesmente criminalizá-la, como se as tentativas do passado de escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas. Pois o humanismo parece querer nos ensinar a cartilha do passado que cheira ao enxofre da catástrofe e o futuro que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que seus defensores, brandos ou não, conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir com base em uma humanidade por vir, nos acostumar com um presente no qual, no fundo, ninguém acredita e a respeito do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.

Publicado em 17 de novembro de 2010 no http://revistacult.uol.com.br/home/2010/11/humanismo-como-patologia/



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A DEMOCRACIA MODERNA E A ESTETICA DA MOEDA



Na sociedade em que tudo se pauta pela exibição midiática, desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do sentimento de vergonha ligado à moral social

Olgária Matos
Ilustração Adriano Paulino

Favorecimentos ilícitos, informações privilegiadas, tráfico de influências, gratificações particulares, desvio de verbas públicas, suborno, omissões por interesses próprios ou partidários, formação de cartéis e negligências várias são, nas democracias modernas, práticas de corrupção e, como tais, sujeitas às leis que regulam infrações.

Deixando-se, pois, à Justiça a função de julgar, absolver ou condenar o governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, em 2010, sua detenção suscitou, como veiculado pela mídia, júbilo, como ocorreu também com a do ex-governador Paulo Maluf, a dos proprietários da Daslu e da Schincariol, respectivamente. Os dominantes não estão acima da lei.

Como, desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor até o presente momento, o fenômeno só se tem ampliado – não se tratando apenas de segredo de informação como antes, mas de algo com maior visibilidade agora –, compreende-se que as diversas figuras da corrupção não são fato isolado, mas atravessam a sociedade inteira.

Identificando nas democracias contemporâneas dispositivos que colocam as práticas autorizadas no limiar da ilegalidade, o filósofo Walter Benjamin anotou: “O valor venal de cada poder é calculável. Nesse contexto só se pode falar de corrupção onde esse fenômeno se torna excessivamente manipulado. Tem seu sistema de comando num sólido jogo entrelaçado de imprensa, órgãos públicos, trustes, dentro de cujos limites permanece inteiramente legal” (“Imagens de Pensamento”, Rua de Mão Única).

A violência da moeda

O dinheiro como valor hegemônico na sociedade contemporânea supostamente promove a ascensão social, baseada exclusivamente em critérios econômicos e no prestígio do dinheiro. Em seu livro O Processo Civilizatório, Norbert Elias analisa os primórdios da “revolução burguesa” na França, indicando a democratização dos costumes da corte. A burguesia, no esforço de alcançar uma legitimidade que não fosse a do dinheiro (que ainda não se impusera como valor), procurou “aristocratizar-se”, adotando a etiqueta e “as boas maneiras” como medidas da polidez e da convivialidade. Como lhe faltava o universo de tradições e méritos da nobreza, esforçou-se para ascender aos bens culturais.

Mas, com a institucionalização da sociedade de consumo, os bens culturais, que exigiam iniciação para serem compreendidos em suas linguagens próprias – como as artes e os saberes literários –, foram sendo abandonados e passaram a se reger pela obsolescência constante. De onde o advento de “modas intelectuais”. A ideologia do “novo-rico” prescinde até mesmo do “verniz da cultura”.

A ideologia dominante em uma sociedade, como Marx observou, é a da classe dominante, e, em nosso tempo, a dos “novos-ricos”. O “novo-rico” é aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece seu valor. Sob seus auspícios, a educação produz uma cultura que atrofia a sensibilidade e o pensamento; a educação é entendida pela ideologia do “novo-rico” como “ serviço” e como mercadoria mais ou menos barata, dos quais o novo-rico é cliente e consumidor.

A perda da autoridade

A política institucional contemporânea participa da falência da escolaridade e da ética que a ela se vinculava quando a educação, ao menos em seus princípios fundadores, humanistas e republicanos, propunha, primordialmente, formar as crianças para fazer delas adultos mais felizes e melhores.

As detenções espetaculares de acusados de crimes do “colarinho branco” promovem uma pseudocatarse da sociedade, de onde não estão ausentes a agressividade e a “pulsão de morte”. Do outro lado, a estética “novo-rico” opera com dólares nos sapatos ou maços de reais nas roupas íntimas.

Na sociedade panóptica, em que tudo se pauta pela exibição midiática, desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do sentimento de vergonha ligado à moral social que, por sua vez, diz respeito à “flexibilização” do sentimento de culpa na consciência moral. O fim da autoridade paterna e o “pai humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais a diferença entre as gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo-rico”, tudo pode ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e sentimentos como se fossem ideias.

Mídia e difamação: o comprometimento da democracia

A República moderna e a democracia, em suas origens e fundamentos, basearam-se, uma vez associadas, na confiança e no “franco dizer” de todos os cidadãos, isto é, na liberdade de expressão, diversa, esta, da delação. Porque hoje prospera a desconfiança como forma de sociabilidade, as delações programadas e premiadas – elaboração de dossiês sensacionalistas em época eleitoral ou denúncias por parte de funcionários e auxiliares de governo – estão se constituindo como práticas reconhecidas e aceitas pelos poderes instituídos e pela opinião pública, com recompensa cash e com a diminuição de penas criminais dos delatores quando estes são criminosos condenados pela Justiça.

O convite à delação tem uma história, cuja expressão mais próxima foi a Revolução Francesa, que reabilitou as medidas do Ancien Régime em jornais publicados entre 1789 e 1791, como La Dénonciation Patriote (A Denúncia Patriótica), L´Espion de Paris (O Espião de Paris) e L’Écouteur aux Portes (O Espreitador de Portas). Denúncias de vizinhos, cartas anônimas ou dossiês preparados para esses fins ocorreram também durante a ocupação alemã em Paris, na Segunda Guerra Mundial, bem como foi rotina nos regimes totalitários, na Alemanha durante o nazismo e na URSS, convertendo-se em política de Estado sob Stalin.

Da demagogia à difamação, do jogo com as engrenagens da Justiça ao direcionamento da opinião pública, da obsessão com a segurança nacional ao patriotismo perverso, da vigilância cidadã ao fim da tranquilidade individual, da defesa do bem público à transgressão do espaço privado, a delação está ligada aos momentos mais sombrios da história. O estudo da delação ao longo do tempo oferece-nos suas relações com o espaço público em que se mesclam verdades e seu contrário, informações e falsificações, intervindo diretamente na formação da opinião pública.

Na ausência de um ministério público, a Atenas democrática antiga – a mesma que inventou a política, o teatro e a filosofia – criou o “delator público”, que dizia respeito à proteção do espaço comum partilhado, o qual reinava soberano. E, para reparar seus abusos, julgava-se também o acusador, analisando suas intenções, a classe social de que provinha e outras circunstâncias de sua vida, podendo ele também ser condenado para o bem da cidade, caso suas intenções fossem de vingança, estritamente subjetivas ou particulares.

Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio para o funcionamento da Justiça.

Olgária Matos é professora titular de filosofia na Unifesp

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

NIZAN GUANAES: Não é o Dinheiro, Estúpido

"Não paute sua vida pelo dinheiro: seja fascinado pelo realizar e o dinheiro virá como consequência"




SOU, COM FREQUÊNCIA, chamado a fazer palestras para turmas de formandos. Orgulha-me poder orientar jovens em seus primeiros passos profissionais.

Há uma palestra que alguns podem conhecer já pela web, mas queria compartilhar seus fundamentos com os leitores da coluna.

Sempre digo que a atitude quente é muito mais importante do que o conhecimento frio.

Acumular conhecimento é nobre e necessário, mas sem atitude, sem personalidade, você, no fundo, não será muito diferente daquele personagem de Charles Chaplin apertando parafusos numa planta industrial do século passado.

É preciso, antes de tudo, se envolver com o trabalho, amar o seu ofício com todo o coração.

Não paute sua vida nem sua carreira pelo dinheiro. Seja fascinado pelo realizar, que o dinheiro virá como consequência.

Quem pensa só em dinheiro não consegue sequer ser um grande bandido ou um grande canalha. Napoleão não conquistou a Europa por dinheiro. Michelangelo não passou 16 anos pintando a Capela Sistina por dinheiro.

E, geralmente, os que só pensam nele não o ganham. Porque são incapazes de sonhar. Tudo o que fica pronto na vida foi antes construído na alma.

A propósito, lembro-me de um diálogo extraordinário entre uma freira americana cuidando de leprosos no Pacífico e um milionário texano. O milionário, vendo-a tratar dos leprosos, diz: "Freira, eu não faria isso por dinheiro nenhum no mundo". E ela responde: "Eu também não, meu filho".

Não estou fazendo com isso nenhuma apologia à pobreza, muito pelo contrário. Digo apenas que pensar e realizar têm trazido mais fortuna do que pensar em fortuna.

Meu segundo conselho: pense no seu país. Porque, principalmente hoje, pensar em todos é a melhor maneira de pensar em si.

Era muito difícil viver numa nação onde a maioria morria de fome e a minoria morria de medo. Hoje o país oferece oportunidades a todos.

A estabilidade econômica e a democracia mostraram o óbvio: que ricos e pobres vão enriquecer juntos no Brasil. A inclusão é nosso único caminho. Meu terceiro conselho vem diretamente da Bíblia: seja quente ou seja frio, não seja morno que eu vomito. É exatamente isso que está escrito na carta de Laodiceia.

É preferível o erro à omissão; o fracasso ao tédio; o escândalo ao vazio. Porque já li livros e vi filmes sobre a tristeza, a tragédia, o fracasso. Mas ninguém narra o ócio, a acomodação, o não fazer, o remanso (ou narra e fica muito chato!).

Colabore com seu biógrafo: faça, erre, tente, falhe, lute. Mas, por favor, não jogue fora, se acomodando, a extraordinária oportunidade de ter vivido.

Tenho consciência de que cada homem foi feito para fazer história.

Que todo homem é um milagre e traz em si uma evolução. Que é mais do que sexo ou dinheiro. Você foi criado para construir pirâmides e versos, descobrir continentes e mundos, caminhando sempre com um saco de interrogações numa mão e uma caixa de possibilidades na outra. Não dê férias para os seus pés.

Não se sente e passe a ser analista da vida alheia, espectador do mundo, comentarista do cotidiano, dessas pessoas que vivem a dizer: "Eu não disse? Eu sabia!".

Toda família tem um tio batalhador e bem de vida que, durante o almoço de domingo, tem de aguentar aquele outro tio muito inteligente e fracassado contar tudo o que faria, apenas se fizesse alguma coisa.

Chega dos poetas não publicados, de empresários de mesa de bar, de pessoas que fazem coisas fantásticas toda sexta à noite, todo sábado e todo domingo, mas que na segunda-feira não sabem concretizar o que falam. Porque não sabem ansiar, não sabem perder a pose, não sabem recomeçar. Porque não sabem trabalhar.

Só o trabalho lhe leva a conhecer pessoas e mundos que os acomodados não conhecerão. E isso se chama "sucesso".

Seja sempre você mesmo, mas não seja sempre o mesmo.

Tão importante quanto inventar-se é reinventar-se. Eu era gordo, fiquei magro. Era criativo, virei empreendedor. Era baiano, virei também carioca, paulista, nova-iorquino, global.

Mas o mundo só vai querer ouvir você se você falar alguma coisa para ele. O que você tem a dizer para o mundo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

CRÔNICA: SE ACASO - Veríssimo



A História teria sido diferente sem Hitler, ou com um Hitler no poder mas tratado por Freud?

Adolph Hitler quase foi se tratar com Sigmund Freud. Seus pais teriam sido aconselhados a levá-lo para uma consulta com o doutor, presumivelmente para curá-lo daquela compulsão de dominar o bairro. Não houve a consulta, Hitler cresceu sem tratamento e, quando a crítica sugeriu que ele trocasse a pintura pela sua segunda vocação, fosse ela qual fosse, lembrou-se da megalomania da infância e o resto é História.

A História teria sido diferente sem Hitler, ou com um Hitler no poder mas tratado por Freud? A ideia do nazismo como uma anomalia patológica, como coisa de loucos, é uma ficção conveniente que absolve boa parte do pensamento cristão europeu de direita da sua cumplicidade.

Mas a ideia de um determinismo neutro, independente de qualquer escolha moral, também é assustadora. Precisamos de vilões mais do que de heróis, de culpados muito mais do que de inocentes. Nem que seja só para preservar o autorrespeito da espécie.

Karl Kraus escreveu que a Viena do começo do século era o campo de provas da destruição do mundo. A derrocada do império austro-húngaro foi o fim de um certo mundo, mas Kraus quis dizer mais do que isso. Para ele, as revoluções do pensamento postas em movimento na Viena da sua época trariam o fim do longo dia do humanismo europeu que durara desde a Renascença, e o século restauraria a idade das trevas.

O encontro que não houve entre o intelectual judeu que radicalizou o estudo da consciência e o homem que quis eliminar as duas coisas, o judeu e a consciência, da História simboliza esse prenúncio, ou essa intuição de Kraus. O século 20 foi o do desencontro entre duas formas de modernidade, a que liberava o pensamento pela investigação científica e a que o aprisionava pelo mito do estado científico.

A questão é até onde coisas vagas, como o clima intelectual de uma cidade, ou clínicas, como a maluquice de alguém, influenciam a História, ou até que ponto uma boa terapia pediátrica teria evitado o Holocausto.

O materialismo histórico rejeita a ideia de sujeitos regendo a História, e marxistas ortodoxos reagem a qualquer sugestão de que as ideias justas venham de um discernimento moral inato. E como os liberais nos dizem que o mercado não é ético nem aético, é apenas inevitável, a História como um relato de mocinhos providenciais em guerra com bandidos doentes sobra para a literatura, ou essa categoria de ficção sentimental que é a história convencional.

Precisamos pensar não só que são iniciativas humanas que movem a História, e que seus objetivos, mesmo que tarde, sejam morais e justos, mas que elas tenham cara e biografia.
A História feita por indivíduos tem o atrativo adicional da conjetura, de infindáveis variações sobre o “se”. O que teria acontecido se Napoleão tivesse se contentado em ser instrutor de tiro ou se os pais de Stalin nunca tivessem se encontrado?
E podemos sonhar à vontade sobre o efeito na nossa vida pública se certas mães brasileiras pudessem ter optado, patrioticamente, por não ter os filhos que tiveram.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

REFLEXÃO: Por que cremos?

da profª Luciene Felix Lamy (http://www.lucienefelix.blogspot.com/)

“Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações?" Jean-Jacques Rousseau.

Nessa época do ano realça-se o sentimento de religiosidade. Muitas pessoas, até involuntariamente, experimentam solene introspecção. A ocasião parece apropriada para refletirmos sobre o surgimento da religiosidade humana e seu desaguar no vasto campo das religiões.

Surpreende o fato de somente agora a religiosidade estar sendo apontada como um dos fatores que contribuíram para a evolução do homem na terra. Segundo o jornalista do The New York Times, Nicholas Wade: “A religião carrega as marcas de um comportamento evoluído, o que significa que existe porque foi favorecida pela seleção natural. É universal porque está impressa em nossos circuitos neurológicos desde antes de os primeiros humanos se dispersarem a partir da África”.

Se, como diz Nicholas, “(...) a religião evoluiu porque conferia benefícios essenciais às primeiras sociedades humanas e seus sucessores”, estamos diante de fato irrefutável, mas não paradoxal. Numa palestra intitulada “Origens da Religião e Pólis Grega” (disponível em vídeo no site da Escola Superior de Direito Constitucional: www.esdc.com.br), que proferi em 2007, explico como e porque o próprio Estado já nasce no seio da religiosidade humana.

O artigo do Times, começa afirmando que dois arqueólogos “fizeram uma descoberta notável sobre a origem da religião ao longo de 15 anos de escavações (...)”. Ora, os primeiros ensaios de uma comunidade gregária se deram em torno dos alimentos. As primevas organizações políticas, as mais primitivas comunidades surgem tendo como esteio essa voraz necessidade dos indivíduos de, juntos, enaltecerem a magia que os circundava e, desse modo, em sincronia se estreitarem à natureza que os provia.

Embora o “Pai” da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) com propriedade, tenha apontado a religião como sendo uma espécie de delírio coletivo, a religiosidade “em si”, que floresceu em nossos antepassados não fora um mero e infundado “delírio coletivo”: a crença, em sua origem, foi fomentada por instinto de sobrevivência.

A abundante, diversificada e bem orquestrada “mãe-natureza” serviu de base a nosso primevo e rústico tecido social. O nascente e o poente, os ciclos de lunação, as estações do ano, o cortejo dos planetas por entre as constelações fixas, cachoeiras, rios, lagos e mares; trigo, milho, oliveira, cevada e todas as aves e os animais, além de reais, eram tudo o que tinham para inteligir a potência (dýnamis) da vida.

O homem primitivo, de racionalidade ainda rudimentar, encontra uma forma mítica para compreender e explicar aos demais a realidade que os circunda. O pequeno grupo ao qual pertence, se convence da lógica embutida nessas explicações.

Surge então um elo comunitário de compreensão dos fenômenos mais prosaicos, irrompidos periodicamente em seus habitats. Rituais que celebram a magia de inícios e fins (ciclos de vida e morte) são estabelecidos consensualmente.

É sabido que o comportamento religioso (qualquer que seja a forma de religação adotada) é identificado em todas as sociedades humanas, independente de qual seja o estágio de desenvolvimento em que se encontre. Digno de nota é o fato de que nesse estágio da religiosidade, o sujeito encontra, no meio no qual se insere, correspondência análoga às suas expectativas individuais.

A adesão aos ritos é espontânea e essa sacra consonância, essa fusão de valores criará um elo de fidelidade entre os membros, tornando o grupo forte e coeso. Unidos, amparando-nos mutuamente, sempre fomos mais fortes e detemos maiores oportunidades.

A religiosidade humana se impôs, inicialmente, por questão utilitária, sobretudo depois que o homem deixou de ser nômade, buscou abrigo fixo e, dependendo da agricultura (entenda-se estações do ano) sabiamente passou a ir ao encontro do tempo cíclico, em simbiose com a natureza.

Embora até hoje não tenhamos deixado de beneficiarmo-nos da caça (presente, ao menos duas vezes por dia, na mesa dos abastados), foi devido ao reconhecimento às misteriosas dádivas de Deméter (deusa grega da agricultura - Ceres em romano, daí a palavra cereal) que nossos ancestrais se aproximaram comungando e rejubilando-se num sentimento de pertença (confira breve relato desse mito celebrado nos “mistérios de Elêusis”, cerca de 800a.C. em "primavera", nesse Blog).

Mas não se intenta subjugar o acaso e seus inescrutáveis caprichos apenas manifestando gratidão . É fundamental evitar os “castigos” interpretados como zangas divinas. Deimos e Phobos (1) sempre foram meios de persuasão muitíssimo convincentes.

Por receio de que mazelas sucedam a todo o clã, expulsa-se transgressores das leis, os profanadores dos costumes sagrados; rituais de expiação zelam pela manutenção da ordem, da paz e das boas graças de uma “autoridade invisível”.

Arregimenta-se credulidade também sob coação, pelo sentir dilacerado da dor. Podia acometer-nos a morte, oriunda das guerras, da fome, de doenças, furacões, vulcões, raios, enchentes, maremotos, enfim, temíamos que pairasse sobre nossa família e/ou comunidade grandes males e infortúnios.

Nesse estágio da religiosidade humana, legitimar a autoridade do grupo levando-nos a colocar o bem-estar do clã acima de nossos interesses pessoais é atitude altruísta que mais nos humaniza; é o que nos tornou e nos tornará sempre mais “humanos”.

Alguns estudiosos tem levantado a hipótese de que, se com a teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882) compreendemos que sofremos alterações com o constante aprimoramento de nossas aptidões físicas, não é improvável que o mesmo tenha ocorrido em nossa psyché.

Nesse sentido, Nicholas Wade afirma: “O que a evolução fez foi dotar as pessoas de uma predisposição genética a aprender a religião da sua comunidade, assim como há uma predisposição para a linguagem. Tanto na religião quanto na linguagem, é a cultura, e não a genética, que fornece o conteúdo do que é aprendido”.

O fato da religiosidade poder ser observada sob uma perspectiva psiquicamente evolucional, como algo que tenha fomentado, alicerçado e impulsionando o desenvolvimento das sociedades humanas não desempata o duelo entre crentes e ateus pois, como aponta o próprio autor: “O favorecimento da religião pela seleção natural não comprova nem refuta a existência dos deuses”.

Nicholas chama a atenção para o fato já sabido de que em “sociedades hierárquicas maiores, os governantes cooptaram a religião como fonte de autoridade”, o que resvalará em atrocidades ou, no mínimo nos tais “delírios coletivos” apontados por Freud, algo que nem crentes nem ateus suportam mais testemunhar.

Se lastimavelmente, algumas religiões e seus ferrenhos seguidores acalentam preconceitos, promovem guerras e perseguições é porque se esqueçam de que seu longinquo e nobilíssimo berço é ser primeva fonte de amparo à fragilidade humana. Deturpam a religiosidade que surgiu, em nossos antepassados unindo os homens na imprescindível promoção do bem estar da coletividade, que “subjaz a” e “abarca a” função social.

A religiosidade primeva não escandaliza a razão. É de uma inteligibilidade intuitiva, dispensando provas ou argumentos, é puro instinto de sobrevivência “impressa em nossos circuitos neurológicos” como denominam os cientistas.

Vislumbraram a Alma (psyché), outrora tão magnânima em seu propósito de nos religar com a ordem (cosmos) presente na natureza (physis) da qual também fazemos parte. Espantados constatam: fomos feitos para crer.

1- Deimos e Phobos: terror e medo, filhos do deus grego da guerra, Ares, que na mitologia romana será denominado Marte. Esse é também o nome dos satélites naturais desse planeta.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

REFLEXÃO: Os Valores da Liberdade

do Eurosophia.com

«Não faças o que não gostares que te façam».
Pítaco de Mitilene

1. Os valores. Que significa valor? Quanto vale isto? Perguntamos. Quanto vale esta coisa, quanto custa? Estamos a falar de valor comercial. Mas também dizemos, fulano tem muito valor. Às vezes quereríamos dizer que ele tem muito mérito, porque tem merecimento ou aptidão. Ou então dizemos que é muito prestimoso, ou seja, que é uma pessoa prestável. Não raro dizemos a um amigo: este relógio raramente está certo, mas não me desfaria dele por nada deste mundo. Este relógio tem, para o seu possuidor, valor de estimação.

Existem qualidades que são desejáveis, como por exemplo, quando gostamos de algo, um objecto que pela sua beleza o escolhemos em detrimento de outros; ou quando achamos bela a pessoa amada. Estamos a falar de valores com outro sentido, o sentido do gosto, do belo. Por outro lado, todo o ser humano de bom senso, que não é egoísta, é capaz de reconhecer as boas acções, a verticalidade, a bondade dos outros. Falamos, neste caso, de uma pessoa de alto valor moral.

Como se verifica, a questão dos valores não é apenas um problema filosófico. Com efeito, surge para cada um de nós, com uma acuidade extrema, toda a vez que se torna necessário enfrentar uma situação dada. Cada pessoa adopta determinada atitude em face dos problemas políticos, sociais e ideológicos e, consequentemente, diante dos valores éticos, estéticos, religiosos, etc. Porquanto, cada indivíduo defronta-se, implicitamente, com o problema do sentido da vida e, de modo mais geral, com o problema dos valores. A realização de si, a necessidade para o indivíduo de se integrar na colectividade, as exigências do eu, o desejo de se realizar como personalidade visível, e às vezes até para dar nas vistas, são factos antropológicos e individuais a que o ser humano não escapa, embora se façam acentuar mais exageradamente em algumas personalidades complexadas, devido a problemas de ordem física ou psicológica. E assim, cada ser humano manifesta a sua liberdade ao realizar ou não os valores, e não ao dar-se a ilusão de impor os seus próprios valores aos outros e à sociedade. Aliás, os valores não se impõem por particulares.

2. As opões valorativas. A vida humana, a cada momento, é o resultado ou a soma de todas as possibilidades conseguidas: possibilidades de optar, de decidir, de fazer, etc. E à medida que vamos preferindo opções em detrimento de outras, valores em detrimento de outros, vamos também orientando a nossa vida segundo determinados parâmetros e, com isso, abandonando outras possibilidades, que nunca chegaremos a saber se seriam melhores ou piores, enquanto desta forma vamos limitando as possibilidades futuras.

O nosso campo de acção, à medida que a vida fluí, vai-se estreitando. A nossa liberdade actual está naturalmente condicionada pelo uso que fizemos da nossa liberdade passada, que por sua vez limita a liberdade futura. Um acto de liberdade presente é um compromisso com o futuro. A liberdade não é uma abstracção, é uma prática. É uma prática que se reflecte em toda a nossa vida. Desta feita, comprometido pelas suas opções passadas, pelas suas paixões e orientações de vida, pela sua educação e cultura, pelo modo como vê a vida e o mundo, mas também pela sua constituição física e psicológica, o homem está cada vez mais limitado na sua acção. E mais limitado está aquele que se julga para além dos outros, porque não compreendeu nada do outro nem da vida. Com efeito, o homem está limitado por várias condicionantes que, em conjunto, condicionam a sua situação. E como o homem está sempre em situação, e porque cada situação está limitada por um conjunto de condicionantes, já não posso alterar a minha situação actual, porque não posso alterar as situações que a antecederam. E, não raras vezes, nem o arrependimento nos pode dissolver a intranquilidade devida às opções incorrectas que tomámos. O que quer dizer que a minha vida hoje poderia ser outra se tivessem sido outras as opções, outras as vivências, outras as condicionantes, outras as situações.

3. Limites da liberdade. «O homem está condenado a ser livre», diz Sartre. De facto o homem é livre no seu querer e actuar, mas ele não é absolutamente livre sem limites nem restrições. Cada um vive numa situação única e concreta da sua existência, traz consigo como herança determinadas aptidões espirituais e corporais. Desde a infância está marcado pelo meio que o rodeia, pelas influências da educação, pelo ambiente espiritual, ético, religioso e ideológico em que cresce e se desenvolve; vive em determinadas circunstâncias nacionais, sociais, políticas e culturais que o marcam. Em todos estes casos está restringida a nossa liberdade: com a limitação da nossa existência finita e singular, do nosso conhecimento finito e sempre incompleto e da nossa vontade finita e reduzida a um estreito campo de acção. Tudo isto se conjuga para que a liberdade do homem só possa ser uma liberdade condicionada e limitada.

A autêntica liberdade, aquela que cada um vive, começa no momento em que somos capazes de entender que a minha liberdade pode e deve coexistir com a liberdade do outro. Convém não esquecer nunca que nós só somos porque existe o outro, os outros. Sem o outro o eu não existe, é um fantasma navegante, que ainda não é ser, mas está ignorantemente convencido que o é. A liberdade absoluta, do quero, posso e mando, só existe em espíritos míticos, na mente daqueles que se julgam seres superiores, cujo destino lhes terá sido traçado por um Deus maior!
Ora, a liberdade não é um objecto de que nos possamos apropriar de uma vez para sempre. A liberdade humana não é, de forma alguma, uma verdade eterna, nem uma posse intemporal, é pelo contrário uma verdade temporal, uma conquista sempre nova, que cada homem persegue sem nunca ter a certeza de ter atingido a sua plenitude. Quer isto dizer simplesmente que os actos dos homens de boa fé têm como último significado a procura da liberdade enquanto tal. E ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. (António Pinela, Reflexões, Abril de 2002).