Sigmund Freud (1856-1939), em seu opúsculo “O Mal Estar na Civilização”, afirma que o homem anseia pela felicidade e que esta advém da satisfação de prazeres. Essas buscas pelas coisas que nos fazem bem provêm da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau. Ganhar na mega-sena será diferente para um endividado ou um milionário. O enfermo anseia por algo que uma pessoa saudável nem pensa.
Tornarmo-nos pessoas felizes é um impositivo do princípio do prazer que trazemos desde a origem e para o “pai” da psicanálise, isso não pode ser plenamente realizado. Mas nem por isso devemos [ou podemos] deixar de empreender esforços para nos aproximarmos ao máximo desse objetivo.
Uma situação de júbilo, inicialmente intenso (tal como o sucesso numa árdua e arrebatadora conquista amorosa) pode até se prolongar, mas, após certo tempo, ela produz somente um sentimento de contentamento. A felicidade e o prazer proporcionados por tantos bens de consumo se esvaem tão logo o adquirimos: “Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas”. Embora sejam diversos os meios para alcançarmos a felicidade, é ainda mais fácil experimentarmos a infelicidade.
Significativas fontes de sofrimento são: a) testemunhar a irreversível decrepitude e a certeza da mortalidade de nosso corpo; b) ameaças do próprio mundo externo, cuja destruição, seja fruto do poder superior da natureza ou da violência de nossos semelhantes sempre nos assombram e, c) a maçante tarefa de nos relacionarmos com os outros, no seio da família, em sociedade e no Estado.
As “lamparinas do juízo” nos forçam a reconhecer essa impotência: não há muito a fazer em relação às duas primeiras fontes de angústia. Só nos resta à sensatez de nos submetermos ao inevitável: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização”. Conviver pode ser complicado e nisso talvez consista a maior fonte de infelicidade (lembremo-nos do nosso artigo já publicado aqui, “Sartre – O inferno são os outros”).
Freud diz que não é de admirar que os homens tenham se acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade: “Na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade”. Assim, um indivíduo pode pensar ser feliz, simplesmente porque sobreviveu ao pior.
Espanta-nos a resignação de tantos desafortunados que, habituados à luta de evitar ainda mais sofrimentos, não priorizam obtenção do prazer. (Mal) disfarçadamente, se comprazem ao relatar um caso de pandemia, duma falência, da queda de um avião e proferem de cor a máxima: “antes pobre com saúde...”. Desconfiados, ao se depararem com um rico saudável, sentenciam: não deve ser feliz!
Evita-se sofrimento mantendo distância das pessoas, se isolando. Mas a felicidade passível de ser alcançada assim é apenas a da quietude. Não convivem. Freud aponta o que considera mais plausível: “tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência [entenda-se, trabalho], passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana”. Eis a razão pela qual a civilização tanto dignifica o trabalho: estamos com todos, para o bem de todos.
Considerando que o sofrimento é sensação e que ele só existe na medida em que o sentimos, o estudioso da psyché (alma) verifica como o uso de prazerosas substâncias que alteram a percepção (álcool ou outro tipo de droga) pode constituir um “amortecedor de preocupações”, um precursor de felicidade. É justamente por deter qualidades tão apreciáveis que o uso desmedido de psicotrópicos é perigoso e capaz de causar grandes danos à humanidade, pois desperdiçam energia que poderia ser “empregada para o aperfeiçoamento do destino humano” (confira meu vídeo sobre esse tema nesse blog).
Eficazes no combate à contrariedade da satisfação dos instintos estão os “agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade”. Dessa forma, o ego, através da sublimação, sujeita os desejos irrefreáveis, doma os instintos mais selvagens, a agressividade e a tendência à barbárie. Exemplos desses “agentes psíquicos superiores”, ordenadores, são as leis, os direitos e deveres, o respeito à ordem e a consideração aos nossos semelhantes.
Trabalhar faz bem: “a alegria do artista em criar ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial”. Para Freud: “Obtém-se o máximo [de felicidade] quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual”, que considera “mais refinadas e mais altas”.
Infelizmente, diferente da satisfação de nossos impulsos mais primitivos e grosseiros, essa salutar felicidade pela realização de um trabalho é acessível a poucas pessoas: “pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de ser comuns”. São àqueles que não trabalham somente pela remuneração.
Mesmo um trabalho profundamente gratificante não garante proteção contra as vicissitudes inerentes à vida; e é impossível que, dessa forma, alguém consiga se precaver contra toda forma de sofrimento. Mas ao nos orientarmos para uma espécie de “vida interior”, buscando alento em nossos processos psíquicos internos, intentamos nos tornar independentes, ao máximo possível, das pressões do mundo externo.
Outra forma de felicidade é a que nos proporciona o fruir das ilusões. A beleza é uma promessa de felicidade e a civilização não pode dispensá-la. Quando, em lazer, contemplamos alguma obra de arte (música, literatura, cinema, teatro, shows, exposições, parques e mares), experimentamos uma “suave narcose”. Mas embora isso nos afaste momentaneamente dos problemas, não é forte e constante o suficiente para nos fazer esquecer as preocupações reais.
Dentre os perigos de não se aceitar a realidade, rompendo as relações com ela, está o de nos tornarmos loucos. Assim, na busca cega pela felicidade, rejeitamos a realidade, recriamo-la a nosso gosto, eliminando seus aspectos mais insuportáveis.
É certo que, em algum grau e sob algum determinado aspecto de nossa vida, agimos como o paranóico que “corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade”. A linha que separa a atitude de quem vê o mundo através de lentes cor-de-rosa da de um ‘louco’ é tênue. O louco é “alguém que (na maioria das vezes) não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio”. Talvez seja por isso que hoje em dia, com a adesão de muitos, inúmeros absurdos nem sejam mais considerados “coisas de louco”.
Freud aponta a religião como um típico exemplo de como a loucura pode ser legitimada, bastando ser compartilhada, por um número significativo de pessoas. Intenta-se obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade. A religião, para ele, restringe o jogo de escolha e adaptação, pois impõe, igualmente para todos, como sendo o caminho certo e seguro, tanto para a felicidade quanto como proteção para todo e qualquer sofrimento: “Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual”.
O fervor da fé, presente no coração de uma pessoa extremamente religiosa pode poupá-la da dor e do sofrimento? Quando um crente/temente, acometido por alguma desgraça se vê obrigado a creditar a causa de sua angústia e desespero a algum insondável “desígnio” de Deus, nada mais faz senão admitir que tudo o que lhe restou de consolo foi essa sua submissão incondicional ao imponderável. Para o psicanalista, se o ser humano estiver lucidamente cônscio de que é passível de vir a se deparar com essas adversidades, pode muito bem dispensar fundamentalismos.
Amar e ser amado! O amor também é um caminho para a felicidade. Mas, dentre os perigos do amor, está a vulnerabilidade à qual nos sujeitamos: podemos perder nosso objeto de amor ou o sentimento de amor que o amado nutre por nós pode acabar. Mesmo assim: “Há porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez?” indaga o analista da psyché.
É ilusão imaginarmos que tenhamos tudo o que desejamos: “A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo”. Resta descobrir, por nós mesmos, de que modo podemos ser felizes, ponderando sobre quanto de satisfação real podemos esperar do mundo exterior, quanta força dispomos para alterar o mundo que nos cerca a fim de adaptá-lo aos nossos desejos e também de adequar nossos desejos a ele.
Nessa empreitada, ainda mais relevante que as circunstâncias externas, será nossa constituição psíquica. Embora sejamos multifacetados (e estejamos sempre em mudança ao longo da vida), o indivíduo predominante erótico, por exemplo, priorizará seus relacionamentos emocionais. Os narcisistas, solitária e auto-suficientes, encontrarão mais satisfação em seus processos mentais internos. Não por acaso, quase sempre são muitíssimo bem sucedidos profissionalmente. Já o homem de ação, indômito, jamais abandonará o mundo externo, palco ideal para por em teste suas forças.
Freud nos ensina que, assim como um negociante cauteloso não cometeria a insensatez de empregar todo seu capital somente num tipo de negócio, a própria sabedoria popular nos alerta a não depositar nossa expectativa de felicidade e de satisfação numa única aspiração. Embora assegure que “Não existe regra de ouro que se aplique a todos”, alguns caminhos nos levam à felicidade. Acalentemos um amor, zelemos pela família, ocupemo-nos com prazer, apreciemos (com moderação!) as "suaves narcoses", cultivemos sinceras amizades e, para que não sejamos dilacerados, resignemo-nos ao inescrutável propósito maior, no caso de tudo falhar.
Por Luciene Félix
Agosto de 2009